
Metaverse Agency participa Da SP-Arte em dois stands

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“Quando acordei hoje de manhã, eu sabia quem eu era, mas acho que já mudei muitas vezes desde então”.
Alice no País das Maravilhas, Lewis Caroll
Houve um tempo de verdades sólidas, de projetos e construções, no qual a arte seria o arauto de um mundo novo prestes a chegar. A crescente e sofisticada crueldade do sistema econômico ocidental transformou a beleza e a bondade numa ruína. O mundo contemporâneo trafega nessa realidade caótica, e a sua paisagem reflete tratores e tremores, buzinas e bytes, imagens virtuais, corpos cibernéticos. Ao interpretar e transformar o mundo, o artista entende a matéria líquida,a indefinição formal e conceitual, a capacidade de se esgueirar pelas trevas, de estruturar ideias e provocar encantamentos. Assim são as epidermes pictóricas de Paula Klien. Instáveis, dialeticamente provocativas, inovadoras e tradicionais, sagradas, sentidas, sintéticas, sofridas, sudários. “Quero ficar no seu corpo feito tatuagem/pra te dar coragem de seguir viagem quando a noite vem” (1). O corpo é líquido e a paisagem é um curioso espelho do externo e do interno, tons e semitons, instigante articulação que seduz pela dinâmica dos espaços, por algo que nos é, a uma vez, identificável e misterioso. A produção de Paula Klien não despreza as referências com pesquisas artísticas de um passado recente que vão desde o radicalismo estético de Reinhardt aos gestos românticos de Soulages e Hartung. Mas talvez o seu processo se aproxime de certa maneira com Kline e suas equações sobre o preto, sobre o branco e o branco sobre o preto. Essa fusão que acaba por sugerir uma obra extremamente complexa em seu processo construtivo se identifica com ações de Paula Klien nas quais o acaso e a intencionalidade criam um tenso e sensível diálogo.
O resultado é uma obra inquieta, integrada a seu tempo sem perder os compromissos com a tradição. Tudo aqui conspira para se fazer da arte um território permanente de questionamento e provocação. Com determinação Paula Klien rege a sua orquestra, lava, inunda, alaga e revela as suas paisagens, as suas peles, os seus espelhos, a sua capacidade de ver o mundo com um olhar corajoso daqueles seres abraçados que cruzaram a porta do jardim.
(1) Tatuagem,Chico Buarque de Hollanda
Extremos Líquidos. Julho. 2018
Paula Klien revelou seu interesse pelas artes visuais desde cedo, e surpreendia a família com a acuidade de seus retratos. Jovem adulta, fez cursos livres no Parque Lage, estudou história da arte, mas também se deteve na música e na dança. A intensidade inerente à sua personalidade fez com que cada uma dessas águas fosse bebida com sofreguidão, num mergulho vertical nessas fontes. A partir da década de 2000 ela integrou todos esses conhecimentos a serviço da fotografia. Realizou campanhas e editorais de moda, que se caracterizaram pela excelência técnica, pela dinâmica perfeita entre modelo e roupa, mas tudo criado a partir de um olhar inusitado, de um certo desafio às convenções, permeado de humor inteligente. Dentro desse espírito apresentou em 2007 a exposição “Gatos e Sapatos”, uma sátira aos homens, revelando alguns de seus defeitos específicos, especialmente aqueles que incomodam as mulheres.
Em 2010, se debruçou sobre outro ângulo do universo masculino no livro “It’s Raining Men”. Sensualidade, descontração e novamente o humor, deram ao conjunto das fotos uma unidade imanente ao processo de trabalho da artista, uma herança das relações estabelecidas entre fotografados e fotógrafa. Na exposição “Edible”, 2012, Paula reuniu homens e mulheres, famosos e não famosos, sob o desafio: “Você tem fome de quê?”. O resultado surpreende pela multiplicidade de situações inusitadas criadas a partir da junção improvável entre elementos simples como peixes, bolas de sabão ou guimbas de cigarro, e o despojamento de corpos desnudados, sem couraças, totalmente desprotegidos no confronto com suas próprias escolhas.
Seu último livro de fotografias, lançado em 2014, tem o sugestivo título de “Pessoas me interessam”. Na abordagem proposta pela artista a atitude dos fotografados era o foco, o ponto de partida que determinava o caminho do ensaio e de sua edição. Em texto para a publicação, Alexandre Murucci observa “a qualidade e o refinamento das fotos e a retomada da investigação das possibilidades sociológicas e estéticas do portrait como testemunho de uma época”. Marcus Lontra, no mesmo livro fala sobre a “transcendência e a poesia que supera o limite do real e se afirma no território das coisas misteriosas e belas”.
Um outro olhar sobre a produção fotográfica de Paula Klien, mostra que, paralelamente à dissecação da personalidade dos modelos, que ela exerce de forma gentilmente contundente, há um contínuo exercício do corpo como paisagem: extensas superfícies de pele, cascatas de cabelos, dorsos arqueados como montanhas. Há ainda uma explícita preferência pela bicromia, o preto e branco, que, excluindo a cor, adensa a mensagem, intensifica a forma, concentra o olhar.
Esses elementos prenunciam uma necessidade interior que irá se tornar um imperativo em 2016: a busca do silêncio e da introspeção. Num retorno às artes plásticas Paula fez uma residência na escola de artes visuais Kunstgut, em Berlim. Produziu pouco na oficina, mas achou um caminho. O encontro com a tinta nanquim foi uma descoberta, um divisor de águas, e nunca a expressão foi tão literalmente adequada para o processo que Paula viria a desenvolver no Brasil.
Originário da China e usado há mais de dois mil anos em caligrafia e pintura, o nanquim é uma tinta que oferece ao artista infinitas possibilidades. É possível prepará-lo em várias consistências dependendo da quantidade de água utilizada; desde uma tinta espessa, profunda e brilhante até uma tinta fina, viva e translúcida. Apenas com o nanquim e a aguada, é possível criar um equilíbrio rítmico entre brilho e escuridão, densidade e luminosidade, e criar a impressão de peso e cor.
Segundo o historiador de arte Lin Ci, a pintura tradicional chinesa era praticada por altos funcionários do palácio, pois o ato de pintar à mão livre trazia conforto aos seus corações, distanciando-os dos ditames da intricada política real da corte imperial. Podemos dizer que, em outro diapasão, foi exatamente esse o chamado que a artista sentiu com a pintura a nanquim – o desafio de mergulhar no seu turbilhão interior e dele extrair a calma.
De um só fôlego Paula cria um método próprio para viver essa experiência purificadora. Num primeiro momento ela encharca de água grandes superfícies, a seguir esparge, contida e cuidadosamente, o nanquim, desencadeando o processo mágico de absorção da tinta, sutil e variável, diverso na tela e no papel. Quando tudo parece se estabilizar, novas aguadas fluem sobre as formas, como limpeza, como depuração, como enxague: “Lavo água preta”, diz a artista.
As pinturas expressivas que brotam do mergulho de Paula Klien no seu mundo interior, mantém a espontaneidade do gesto que as criou, produzindo uma variação monocromática de extrema riqueza. Os tons do nanquim ora absorvem, ora emitem luz, vão do preto denso ao negro texturizado, dos cinzas sutis ao branco radiante, e, como as águas dos rios, fluem impregnados de quase imperceptíveis nuances de terra e céu, de marrom e azul. Mais do que a presença material da tinta, o que está em curso é a intimidade imersiva da artista revelando a verdade universal da relação de cada homem consigo mesmo, do eu confrontado com a luta entre a constância e a impermanência, e a transcendência metafísica necessária para absorver o axioma irrefutável do “continuum” do universo, do planeta, do ser humano – e o contraste com a complexa vida que construímos baseados na ilusão da permanência.
Por esse substrato, o trabalho de Paula Klien, classificado em princípio, como expressionismo abstrato, na senda de artistas como Hans Hartung ou Soulages, se revela na verdade muito mais próximo de Gao Xingjian, ou Zeng Chongbin, artistas contemporâneos chineses que hoje impressionam o circuito internacional. Exatamente por atingir essa mesma essência, que hoje fascina o Ocidente, seu trabalho teve imediata aceitação na Europa, desdobrando-se num intenso período de exposições. Não por acaso foi a única artista brasileira convidada a participar da mostra Pincel Oriental, no Centro Cultural Correios-RJ, em 2018.
Retomando seu trabalho no ateliê, em 2019, Paula Klien viu surgir um desdobramento sutil em seu processo. Na sua produção anterior não se detectava nenhum código visual, nem a mais mínima referência imagética, e a fruição se completava inteiramente na imaginação do espectador. Nos novos trabalhos, entretanto, linhas quase retas cortam o campo pictórico, indicam pistas, abrem estradas, insinuam caminhos. Seriam pontes? Caminhos seguros, que se erguem sobre os rios e nos deixam conviver a salvo da inconstância e a impermanência da água – como metáforas do enfrentamento do medo. E, de fato, a obra recente de Paula Klien flui mais clara, mais aberta, mais viva.
Outra vertente que aparece nessa nova produção são as digigrafias, um processo contemporâneo da gravura. Esse trabalho parte de um desenho a nanquim, que é escaneado e a seguir manipulado digitalmente, o que permite inúmeras interferências sobre a obra original. Após essa manipulação é realizada a impressão com uma tiragem determinada pelo artista. Nas obras de Paula essa técnica abriu a possibilidade de integração de um amplo repertório de referências que ela fotografou durante anos, detalhes de brilhos e sombras, texturas de galhos e lãs. Dobradas sobre si mesmas as imagens iniciais são duplicadas e espelhadas criando miragens caleidoscópicas, visões que parecem emergir do inconsciente e pedir por interpretações, suscitando analogias com o projetivo teste de Rorschach.
A exposição Fluvius reúne um conjunto das novas pesquisas de Paula Klien, ao lado de algumas obras produzidas anteriormente. Um vídeo, especialmente realizado para a mostra, deslinda o processo de trabalho da artista, deixando entrever as possibilidades performáticas subjacentes ao caráter coreográfico que permeia seu processo gestual.
A presença hierática de duas exuberantes raízes na exposição, que poderia parecer um mistério em meio a tantas águas, é assim elucidada pela artista, “as raízes protegem o rio das erosões, elas seguram a terra evitando que o rio seja soterrado; sou raiz, daquelas bem profundas, espalhadas, emaranhadas, enroladas, retorcidas e enroscadas, as que mais servem para manter a terra firme – e que deixam a água fluir”.
Simbioticamente unidas, águas e raízes refletem bem esse momento do trabalho de Paula Klien, instável, sutil e delicado, mas também denso, intenso e profundo. São as águas mansas de um rio turbulento.
Fluvius. Nov.2019
É preciso duvidar dos símbolos, mas nunca das formas. Porque o que significa algo esconde seu significado por trás das coisas, elaborando significados construídos contextualmente. Enquanto as formas são soberanas e absolutas. As pinturas da carioca Paula Klien retratam os fluxos das formas que são, no limite, a vida sem símbolos, experimentada pela carne.
Ao buscar a forma de sua pintura, a artista permite ao nanquim – tinta de diluição aquosa – trabalhar junto de si. As formas visíveis – o resultado desse processo fluído – são o confronto entre os materiais orientados por Paula Klien. O arrebatamento causado por essas imagens, por sua vez, é criado no reconhecimento imediato da imagem que se cristalizou.
Palavras não bastam, mas o gesto corpóreo capaz de registrar os caminhos de algo fluído, como a vida, talvez consiga retratar a constante relação entre o entorno e a inevitável presença humana. Tão passageiro quanto à marca da tinta aquosa é o gesto, tão frágil quanto as palavras do mundo é a comunicação.
Como se a transcendência metafisica fosse parte do mundo material, como se a arte pudesse acessar algo negado a matéria, as pinturas de Paula Klien são a vida acontecendo diante dos olhos e seu registro sensitivo. Porque as palavras podem ordenar muitas coisas teóricas, mas nunca algo tão inusitado e contraditório quanto o ato de respirar. A arfada de ar dos pulmões é diferente da projeção de estrelas que se pode ver em pinturas como Invisibilieties, 2016, ou Moon Dana, 2017? E onde estão estrelas se não nos olhos de quem vê?
Porque, rigorosamente, o que a artista cria são as impressões pictóricas sobre a tela. E quem pode negar que a vista de alguém é mais verdadeira que a de outro? Nas composições da pintora carioca poucas cores são vistas, mas muitos matizes nascem na técnica por ela empregada. Sobreposições quase monocromáticas que afirmam com intensidade a potência de imagens – que ao fazer parte da matéria do mundo – exploram palavras e sentimentos incontidos nas pedras e referidos nas rimas.
Ciente da capacidade única do seu fazer artístico em comunicar – expandir a linguagem –, Paula Klien permite-se mergulhar nas telas para que as imagens que emergem com ela sejam mais do que a simples e direta representação do que o mundo consegue criar. Os simbolos, assim, são transformados em partes cristalizadas de um tempo sempre avançando com suas marchas e contra marchas sociais e mentais.
Enquanto as formas inseridas na pintura da artista são a tangência entre um ser humano e seu tempo. O entrelaçamento cuidadoso entre a vida fluída e as representações que, em tempo, tornam-se estáticas e cristalizadas. O fluxo – do corpo, da cor, da tela – é, portanto, nas pinturas de Paula Klien, elemento principal para a representação elaborada. Porque mais do que retratar gestos, o que a pintora revela é a inconstância da vida em seus muitos movimentos invisíveis que embalam os seres humanos rumo ao amanhã.
Abril de 2018
A obra de Paula Klien trata do tempo. Esse elemento fluido feito de átomos do instante.
Pintar a passagem, o que volteja, o sempre que vem e nunca para. Mundo efêmero, inconstante, que desejamos perpetuar. Vigília ansiosa entre sonho e realidade. Registro de uma ação que hesita entre a intenção e o acaso.
O que resulta, a obra, fixa o gesto de lidar com materiais que absorvem e irradiam a luz. O negro do nanquim dissolvido em água, saturado de pigmento, absoluto, ou tonalizado em graus de cinza, encontra o branco do papel e promove a luz e a sombra. Elementos criadores do espaço e seus acidentes.
O papel é o suporte que, ora absorvendo a tinta, ora encharcado, a deixa escorrer. É a superfície ideal para fixar os gestos do artista. Não é um plano fixo. Posto no chão, sobre ele se inclina o artista. Tomado em mãos, um gesto dos braços o verticaliza e o líquido escorre.
No papel há manchas negras que desprendem as bordas desse plano de claridade e faz seus limites carcomidos imprecisos, como folhas soltas de um livro muito antigo. O que era plano de fundo, aflora e se presentifica. Às vezes, um decalque no verso da folha surge, por essa ação nos bastidores algo se revela: aqui, uma impossível metáfora tenta o oposto, o refluir. A mancha, o escorrido e o respingado, aliados aos efeitos pictóricos das pinceladas, atuam sobre o papel a passagem das sombras da tinta. Algo de caligráfico e oriental persiste nessa escolha técnica. O desenho é o do espaço concebido.
O homem contemporâneo vive um tempo absurdo. Muitos conflitos forçam o deslocamento e o exílio. Não ha formas fixas para representar o mundo. Vago e impreciso é o fluir do tempo, assim, água, nanquim e papel são os recursos elegidos pelo artista. Meios essencialmente plásticos e adequados para servir ao artista em sua lide com aquilo que flui. Seja o tempo com seus abismos, seja o sonho com suas sombras fugidias.
Professor Belas Artes – UFRJ
2016